Piauiês e UX: um breve diálogo sobre diversidade cultural
Sentado num tamborete na calçada de sua casa xis com a igreja, o Piauiês observa as pessoas passarem na rua e relembra algumas histórias que ouviu de sua avó, e assim vai contando os causos, às vezes de revestréis, às vezes não. Quando de repente, se distrai com um carro que passa na tubada, cortando seus pensamentos, e logo depois do susto só observa de longe o carro dando o prego.
E o Piauiês termina dizendo: Tava avexado, né? Afobado assim só lá na baixa da égua, interrompeu até meus pensamentos.
Legenda:
Enquanto isso o UX, escuta, ri, se confunde, entende e não entende, mas registra tudo no seu iPad, grifando alguns termos para procurar no Google ou na Enciclopédia Internacional de Piauiês.
Esse diálogo está na minha mente o tempo todo. Sou uma piauiense que veio para São Paulo em 2016, já com formação em Comunicação Social e em Piauês (esse modus falandi que a gente aprende no dia a dia hahaha), para estudar Direção de Arte, e logo depois conhecer o tal do UX.
Lascô! Pensei: e esse palavriado novo? Para mim, muitas palavras eram novas, então eu anotava tudo e depois ia pesquisar, para descobrir que a maioria tinha o mesmo significado de outras que já conhecia e já estavam inseridas no meu cotidiano (palavras diferentes com um mesmo significado). Só alguns exemplos delas: Sprint, Scrum, PO(Piouuuu kkkk que é Product Owner), Pitch(não é o Brad Pitt), UX, e por aí vai. Sem falar nas inúmeras palavras estrangeiras que usamos no nosso dia a dia: call, overview, entre outras, que são características da comunicação de negócios/corporativa. Acho até interessante como usamos várias palavras e termos para representar algo.
Representação significa utilizar a linguagem para inteligivelmente, expressar algo sobre o mundo ou representá-lo a outras pessoas (Stuart Hall, 2016, p.31)
As coisas só passam a existir quando damos nomes a elas. Interessante pensar assim, pois uma "mesa" só é "mesa" para nós porque identificamos no nosso mapa mental um conjunto de códigos que fazem compreender o seu significado cultural, através da representação. Até mesmo uma "table", será logo associada a uma "mesa" se tivermos contato com essa outra forma de representação de outro idioma. Precisa fazer parte do nosso mapa mental.
Trazendo o conceito de Tipificações de Alfred Schutz, Richard Dyer (1977, apud Stuart Hall, 2016, p.190), argumenta que sem os tipos, seria muito difícil ou até mesmo impossível extrair o sentido de mundo. Compreendemos o mundo a nossa volta, acessando os conceitos na nossa mente de coisas, pessoas e eventos por meio de um regime de classificação - de acordo com nossa cultura - fazendo os conceitos e significados se encaixarem.
Fica a reflexão: Então, como estamos representando e nos comunicando no digital ou físico e considerando a grande diversidade cultural que o Brasil possui em suas representações?
Piauiês. Quem são? O que fazem? O que dizem?
O Piauiês é considerado o “modus falandi” piauiense, um conjunto de verbetes da forma de se comunicar no Piauí, do povo caloroso do Nordeste Brasileiro que fala rápido e aperriado. Não é exatamente um dialeto, mas uma forma de comunicação peculiar de um povo e que é transmitida por várias gerações (ê riqueza!).
Essa forma peculiar de falar, foi tão bem catalogada pelo autor da Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês, Paulo José Cunha, estudo que se iniciou em 1995, depois várias conversas com sua mãe, seus amigos e nas observações do cotidiano piauiense.
Segundo o autor, as palavras são feitas de vento e o vento, como os pássaros, não respeitam as fronteiras geográficas, para se referir a alguns verbetes que não são exclusivos do Piauí, mas também são comuns no Ceará, Maranhão e Bahia. Assim, várias palavras da Enciclopédia são comuns a estes estados, mostrando como a comunicação é fluida, atravessando cidades e contextos. Cita também as referências do "Dicionário de Baianês" de Nivaldo de Lariú, o "Dicionário Brasileiro do Folclore" de Luiz da Câmara Cascudo, o "Minidicionário de Pernambuquês" de Bertrando Bernadino e a "Paremiologia Nordestina" de Fontes Ibiapina.
Esta Enciclopédia é internacional, chique não? Depende. O que é chique? Para muitos a língua do povo é considerada como inculta, surgindo do preconceito e da desinformação. Para o autor da enciclopédia, o jornalista professor e escritor, Paulo José Cunha, a língua do povo é pura feito água de mina, "ouro nativo", natural e mais nobre que as falas da academia.
A riqueza do povo, isso sim é chique (lembrando que o termo “chique” é completamente relativo) A internacionalização é o alcance, mas sem a sabedoria popular, a cultura não sobrevive.
O Piauiês, assim como as outras formas de regionalismo cultural da grande diversidade brasileira, é uma riqueza de significados, cultura e representação. A forma como um povo se identifica e se comunica.
Para Saussure (conhecido como “pai da linguística moderna”), a linguagem é portanto, um fenômeno social, que não pode ser uma questão individual, já que não é possível inventar as regras da linguagem individualmente, para nós mesmos. Sua fonte reside na sociedade, na cultura, nos códigos culturais compartilhados, no sistema da linguagem — não na natureza ou no sujeito individual (Stuart Hall, 2016:63).
O diálogo
Design é função, mas também comunicação. É diálogo.
…quando escrevo que texto de UX deve ser dialógico, não específico de uma voz ou tom, como uma "conversa casual" ou "específica de uma cultura", quero dizer que é reconhecível pelas pessoas como uma interação com as palavras. Quando interagem com a experiência, os usuários estão dialogando com ela (Torrey Podmajersky, em Redação Estratégica para UX).
Aí surge meu conflito interno diário: Comunicação x Cultura
O tal do UX citado é esse ser que pode parecer ser de outro planeta, mas é apenas um(a) criador(a) de experiências acessíveis para todes. O UX é um ser que pesquisa, cria, valida, escuta, entende, analisa, propõe, testa, erra, percebe, experimenta e sente.
Pensei em trazer este diálogo do Piauiês(regional) com o UX(global) depois de várias conversas, cursos, palestras, sobre a comunicação em interfaces digitais , e principalmente no que se refere à UX Writing e à Arquitetura da informação. A necessidade de sempre usarmos palavras de entendimento global, sempre evitando gírias e palavras de duplo sentido. Concordo, mas reflito. Hoje fazemos produtos tidos como globais, mas será se teremos um futuro mais personalizado, mais direcionado para meu usuário? Aí começo a viajar nos pensamentos.
Nós designers de interfaces, não temos que focar sempre em telas lindas e coloridas e gifs fofos. Sem texto, sem diálogo, sem jornada, sem comunicação, não há experiência.
Acredito sim que o ideal é usarmos palavras que todos possam entender, mas será que todos entendem? Será que todas as palavras usadas no universo SP (São Paulo) são assimiladas para todas as diversas culturas que formam esse BrasilZão de meu Deus? Será que existe palavra errada? Será? O que será que será?
Perguntas. Problemas. Pesquisa. Leitura. Escuta. Acho que essas ferramentas não podem faltar na nossa caixinha de designer. Sem ego inflamando e dono da verdade de que, se entendo de tecnologia, meu app é sucesso. Mas e as pessoas? E sempre tem que ser um app?
Acredito que antes de sermos global, precisamos ser local, conhecer as particularidades. Às vezes saem os melhores insights dessas prosas.
Local x Global
Este breve diálogo entre o Piauiês (regional) e o UX (seria global?), me gerou várias reflexões, dentre elas o pensamento na temática glocal.
Segundo Robertson (2003, apud Pedro da Costa Junior, 2016, p.176) a “glocalização” seria então uma globalização que institui fronteiras, pois esta necessita se ajustar às realidades locais, ao contrário de simplesmente aniquilá-las ou desprezá-las.
O Global e o Local sendo analisados e compositores de outras experiências. Acho válido o estudo, o conhecimento na diversidade cultural, já que é nossa forma de representação da linguagem, da nossa comunicação e nossos valores sociais. Mesmo que ainda assim, a gente opte por diálogos "não específicos de uma cultura" como foi citado e recomendado por Torrey. Para mim, uma visão sistêmica é interessante, para poder compreender o todo pelas partes que o formam.
O regionalismo é hoje um espaço de cruzamento de fluxos globais e vivenciais locais, foco, simultaneamente, de aprofundamento da esfera pública e de tensão, onde cidadania e democracia adquirem novas configurações, não necessariamente positivas, não necessariamente negativas mas, com certeza, abertas às interpretações de todos os cidadãos, comunidades e sociedades. No entanto, o que se espera dos Media é que possam contribuir para um sentido extrovertido de construção de identidade, tendo como raízes as origens históricas mas olhando o futuro como um espaço de experimentação (CUNHA, 2008:15).
Mais curiosidades do Piauiês
E pra complementar, trago um pequeno exemplo, porém de grande complexidade hahaha, de mais curiosidades de como costumamos falar certas palavras em Piauiês, pelo senso comum, pelo modus falandi, pela identificação e representação cultural. Sem os rótulo de certo e errado, porque cultura não tem errado, e sim o que tem significado para um determinado grupo.
Normalmente, nomeamos estas coisas como: lapiseira, coleção, grafite e ponta de grafite. É algo que vem de loooongeeeee e vai passando de boca a boca, porque claro que no google é bem diferente.
Legenda:
Essa riqueza de ter um modus falandi próprio me enche de orgulho, é um pedacinho da raiz da brasileira, e como Paulo José falou, é ouro nativo. É se reconhecer no meio da multidão pelo sotaque, pelo jeito de falar que só a gente entende.
E para finalizar, penso que esta fase de pesquisa, o tal UX Research seja uma das fases essenciais na construção dos processos e no valor das nossas "entregas" como designer, onde a Antropologia possa trazer seus ensinamentos para o Design. Que sejamos menos donos da verdade, mas donos da escuta. E que a gente reflita sobre os rótulos de palavras erradas, e sim nos contextos usados.
Obrigada por ouvir e ler nosso modus falandi Piauês, mermãs e mermãos.
Referências:
CUNHA, Isabel Ferin. Estar em casa: os media entre a globalização e a regionalização. Natal, RN: Intercom 2008. Disponível em: Acesso em 24 de out. 2020.
CUNHA, Paulo José. Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Teresina: 2ed. Corisco, 2001.
DA COSTA JR., Pedro Wilson Oliveira. O local do global: as contribuições sociológicas de Roland Robertson acerca da globalização. Disponível em: Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v. 5, n. 9, jan-junho 2016. Acesso em 24 de out. 2020.
HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.
PODMAJERSKY, Torrey. Redação Estratégia para UX.São Paulo: Novatec, 2019.
ROBERTSON, Roland. “Glocalización: tiempo-espacio y homogeneidad heterogeneidad”. In: MODEDERO, Juan Carlos (coord.). Cansancio del Leviatán: problemas políticos de la mundialización. 2003, pp. 261–284.